Inferiores e Degenerados: “raça” e futebol no Recife do início do século XX
Tiago Maranhão
Mestre em Política Comparada pela Universidade de Lisboa
Resumo: A partir da difusão das idéias eugênicas no futebol, iremos tentar explicar o pensamento da elite recifense e as influências das teorias racistas européias do século XIX por ela assimiladas, tendo como documentação primária os jornais da cidade, como o “Jornal Pequeno”, “A Província” e o “Diário de Pernambuco”.
Palavras-chave: Eugenia; Futebol; Recife.
Abstract: It is from the diffusion of the eugenic ideas in the football that we will try to explain the thought of the Recife´s elite and the influences of the europeans racist theories, created in the XIX century, that was assimilated for it, having as primary documentation the periodicals of the city, as the “Jornal Pequeno”, “A Província” and the “Diário de Pernambuco”.
Keywords: Eugenia; Footbal; Recife.
Iniciou-se na Europa, a partir da segunda metade do século XIX, uma discussão teórica a respeito da constituição das “raças” humanas. E logo essas teorias chegaram ao Brasil, fato que causou grande confusão entre a elite nacional que teve que “adaptar” os novos pensamentos à realidade racial do Brasil.
Para justificar as práticas discriminatórias e racistas, foi criada no século XIX, por Francis Galton, a eugenia, que se caracterizava como um conjunto de idéias e práticas relativas a um “melhoramento da raça humana”. Esses pensamentos chegaram ao Brasil do século XX e tiveram papel determinante no modo de pensar e agir da elite brasileira e, por conseguinte, da pernambucana, pois seus pressupostos explicariam a situação pela qual passava o “atrasado” Brasil e mostrariam como resolver esse problema.
Segundo os pressupostos eugênicos, a hereditariedade determinaria o destino do indivíduo, se seria “inferior” ou “superior”, ou seja, que o pobre era pobre por ser inferior, nascendo predestinado à pobreza. A inferioridade e a superioridade eram dados a priori, determinados pela própria natureza. Por isso os jovens da alta sociedade deveriam exercitar e cuidar de sua saúde e de seu corpo, para que as futuras gerações não nascessem “degeneradas”.
O que a eugenia propunha, em estudos recebidos com alvoroço, era a limpeza da raça, por meio da eliminação de traços humanos indesejáveis. A teoria passou à prática e, nos primeiros anos do século XX, o que se viu no Brasil foi uma espécie de "higiene racial". Procurou-se estabelecer o modo mais eficaz de se “apagar” os cidadãos classificados como sendo de "baixa qualidade racial". Era preciso impedir a "degeneração da raça" e assim como era preciso fazer a higiene das cidades, também se deveria fazer a "limpeza da raça".
No Brasil, o movimento eugenista esteve profundamente articulado à ideologia do “embranquecimento”. No início do século XX, a classe dominante brasileira via-se diante do dilema de um enorme contingente populacional negro politicamente emancipado, porém, socialmente subalterno. Uma das explicações racistas, com pretensões científicas, que sofreu forte influência das idéias européias, foram as obras de Silvio Romero e Nina Rodrigues, pregando a inferioridade genética da raça negra como fator explicativo para tal estado de acontecimentos. Nina Rodrigues foi um dos precursores dos estudos sobre o negro no Brasil, tendo escrito seu livro em finais do XIX e início do XX, embora tenha sido publicado completo somente em 1932. Para ele “a Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestes serviços à nossa civilização, por mais justificados que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo”1.
Dos fins do século XIX ao primeiro quartel do século XX (especialmente até a entrada dos anos 20), travou-se uma surrealista discussão sobre em quanto tempo o negro deixaria de existir. Os mais “otimistas” acreditavam que em cem anos, os mais “pessimistas” iam até três séculos. Muito mais importante que essa estranha polêmica era o fato que se discutia, sem nenhuma oposição cultural ou política, a ideologia do “branqueamento” com algo definitivo. Segundo os teóricos da época, o negro iria desaparecer da população brasileira através da miscigenação, que depuraria a raça e a levaria ao embranquecimento.
O historiador Thomas E. Skidmore cita um artigo escrito por Theodore Roosevelt (futuro presidente dos EUA) após viagem ao Mato Grosso, juntamente com o general Rondon, publicado pela revista “Outlook” e traduzido pelo jornal “Correio da Manhã”, onde diz: “o ideal principal é o do desaparecimento da questão negra pelo desaparecimento do próprio negro, gradualmente absorvido pela raça branca”. Mais adiante continua dizendo que “não quer isso dizer que os brasileiros sejam ou venham a ser o povo de mestiços que certos escritores, não só franceses e ingleses, mas americanos também, afirmam que são. Os brasileiros são um povo branco, pertencente à raça do Mediterrâneo, diferenciando-se das gentes do norte, somente como deles diferem, com seu esplêndido passado histórico, as grandes e civilizadas velhas raças de espanhóis e italianos”2.
Ao se referir a “certos escritores franceses”, Roosevelt fala certamente do Conde Gobineau que havia expressado sua repulsa ao povo brasileiro, somente excluindo o Imperador Pedro II, certamente por ser seu amigo. Gobineau não só afirmava que os negros eram uma raça inferior como profetizou uma degeneração genética para os brasileiros em menos de duzentos anos, pois “nem um só brasileiro tem sangue puro, porque os exemplos de casamento entre brancos, índios e negros são tão disseminados que as nuances de cor são infinitas, causando uma degeneração do tipo mais deprimente tanto nas classes baixas como nas superiores”3. Roosevelt via o elemento indígena como algo positivo no povo brasileiro, contudo esperava que a grande imigração européia fosse, pouco a pouco, tornando “o sangue preto um elemento insignificante no sangue de toda a nação”. Gobineau considerava que os brasileiros eram “todos mulatos, a ralé do gênero humano”. Os escritos de Gobineau sobre o Brasil representavam o pensamento de um dos maiores teóricos do racismo do século XIX e suas idéias foram adotadas por parte da intelectualidade brasileira como referência para explicar o Brasil.
Essas bases pseudocientíficas criaram um determinismo racial (se pertence a tal raça, será de tal forma) que fazia com que a hierarquia social fosse traduzida por hierarquia racial. Para que o ideal eugênico fosse efetivado, seria necessário que fosse estimulada a procriação entre os considerados “tipos eugênicos superiores”. Dessa forma, o ideário eugênico implicaria práticas sociais que viriam a se constituir em políticas públicas cujo objetivo seria “melhorar a raça” e, ao mesmo tempo, “impedir a degeneração” da mesma. O embranquecimento através do recurso à imigração e à miscigenação tornou-se visão hegemônica para a solução do assim chamado problema racial brasileiro.
A teoria do “embranquecimento”, no entanto, inovava em termos de propostas racistas, já que não articulava a degenerescência da raça à miscigenação. Se para Gobineau, que esteve no Brasil, a população do país estava degenerada pela miscigenação e, portanto, fadada a desaparecer, para Oliveira Vianna, um dos principais teóricos racistas do País e defensor da imigração ariana, o cruzamento entre as raças representava justamente uma forma de elevar o teor ariano do sangue brasileiro.
Como afirma a historiadora Maria Eunice Maciel, “numa sociedade fortemente hierarquizada como a brasileira, onde, dentro da perspectiva de hierarquia racial, o branco europeu era considerado como sendo ‘civilizado e superior’, os indígenas e os negros como ‘selvagens, primitivos e inferiores’ e os mestiços ‘degenerados’, surgiram projetos de ‘salvação nacional’ via o ‘melhoramento da raça’, ou seja, a eugenia”4. Segundo o pensamento da historiadora, a eugenia tornou-se um projeto político que pretendia implantar medidas segregacionistas e excludentes.
Pouco tempo antes de se completar o primeiro aniversário da “partida inaugural” do futebol no Recife, já se nota a difusão das idéias eugênicas no desporto que ganhava a simpatia da jovem elite recifense. Cabe, antes, um pequeno relato sobre a implantação “oficial” do futebol em Pernambuco.
Pelo modo como se tem escrito a respeito da história do futebol pernambucano, poder-se-ia concluir que essa atividade foi trazida para o estado da mesma forma que se pensava na maioria do país. Sempre se contava (e ainda se conta) que um filho de família tradicional, após concluir seus estudos na Inglaterra, volta à casa com um manancial de equipamentos destinados à prática do então chamado “foot-ball”.
Tanto Givanildo Alves como Aroldo Praça, falam da introdução do futebol em Pernambuco pelas mãos (ou pelos pés) do estudante Guilherme de Aquino Fonseca em 1903. O pernambucano Guilherme, então com 18 anos, havia regressado da Inglaterra após 5 anos de estudo na Hooton Lown Scholl. Ambos os jornalistas falam que Guilherme trouxe consigo bolas, meiões, camisas e chuteiras, pois, para eles, sua intenção era fundar um clube. Além disso, como diz Aroldo, queria “implantar no povo pernambucano o gosto e o prazer pelo futebol ‘association’. Givanildo Alves vai mais além e diz que vieram também outros “apetrechos” para jogos de cricket, rugby e tênis, “pois sua idéia não era somente a de inocultar no recifense o vírus do futebol association”5.
Mais que mera coincidência, a semelhança entre sua trajetória e a de outros rapazes indica a lógica que caracterizou a consolidação de uma certa memória sobre o futebol – que afirma ser ele um esporte que “nasce e se desenvolve entre a elite”. Nesse tipo de visão o futebol seria um jogo “predominantemente das camadas superiores”, praticado por “membros de famílias abastadas”, que buscavam na Europa as raízes de uma nova cultura e de uma nova civilização.
Ao eleger como marcos iniciais do futebol no Brasil figuras como Charles Muller (São Paulo), Oscar Cox (Rio de Janeiro) e Guilherme Fonseca (Recife), memorialistas e historiadores participaram do processo de criação de uma memória do futebol brasileiro que, no fundo, nada tinha de original: vendo nos seus primeiros tempos um perfil aristocrático e elitista, fizeram da história particular do jogo o reflexo de uma história mais ampla criada para os primeiros tempos da jovem República, que lhe atribui uma marca oligárquica e excludente. Eles foram importantes como divulgadores do novo esporte, porém não bastam para explicar toda a história do jogo em seus primeiros anos no Brasil.
Com esse discurso elitista e influenciados pelas teorias eugênicas vindas da Europa, os sportmen representantes da classe alta recifense começam a expressar seu pensamento eugênico. Em matéria publicada no jornal “A Província” em abril de 1906, que circulava no Recife, o redator fala da abertura da estação do foot-ball com um match entre o Sport Club do Recife e a Western Telegraph no campo do Derby. Após o anúncio, porém, transcreve uma carta (não cita o nome do autor) enviada ao periódico falando a respeito do futebol recém chegado à cidade.
Felizmente parece que vão tendo boa aceitação e se desenvolvendo em nosso meio estes jogos esportivos, que nos países mais civilizados e mesmo em alguns estados do Sul do Brasil se acham em pleno vigor, completando a educação dos moços, e que até bem pouco tempo nos eram inteiramente desconhecidos, porquanto temos cuidado exclusivamente da educação do espíritu, deixando inteiramente ao lado a educação física do homem, a qual tão poderosamente contribue para o aperfeiçoamento da raça: não se pode esperar uma prole sã e robusta de indivíduos franzinos e raquíticos. O Sport Club, se não nos enganamos, foi quem introduziu nesta cidade o jogo de foot-ball, jogo interessantíssimo e bastante complicado, que deve ser de um resultado magnífico para o desenvolvimento físico dos moços.6
E prossegue falando da partida que ocorreria no domingo, quando ao final conclui que:“(...) o vasto campo do Derby ficará florido com o que há de mais elegante e seleto no nosso high life (...)”.
Não se pode pensar que o futebol, com o crescimento dos clubes e sua grande difusão, era a única coisa a se desenvolver no Recife. Sua proliferação na cidade fazia parte de um processo iniciado ainda no século XIX e que ganhava grande impulso nos primeiros anos do século XX, transmitindo o pensamento ideológico europeu da higiene.
Os higienistas tinham propostas para serem praticadas nas casas, na alimentação, nas ruas e até na organização familiar das cidades, com regras e disciplinas a serem estabelecidas e seguidas. Dentre essas propostas, uma tinha grande importância para os médicos: a higienização do corpo do indivíduo, que provavelmente estava debilitado por “séculos de inércia e preguiça”.
De início houve resistência por parte das camadas letradas brasileiras que viam com certa desconfiança esse enaltecimento do cultivo do corpo como sinônimo de saúde. No entanto essa resistência não duraria muito tempo, pois as teorias higiênicas iam ganhando grande força e aceitação na Europa. E se a falta de exercícios físicos seria prejudicial aos povos dos países de clima temperado, seria, então, fatal para a “raça” em países de clima tropical como o Brasil.
Seguindo as teorias racistas sobre a “inferioridade dos mestiços” os médicos acreditavam que o Brasil necessitava urgentemente que sua população desenvolvesse a educação física. A necessidade maior, a prioridade, melhor dizendo, estaria na juventude e na infância que seriam os futuros cidadãos do país. “Aparecendo como os salvadores do vigor nacional, os esportes passavam, então, a contar com o entusiástico apoio de higienistas e educadores interessados no desenvolvimento físico da nação”7. Vale lembrar, no entanto, Michel Foucault quando trata de outro tipo de racismo surgido das idéias da psiquiatria, “um racismo que nessa época foi muito diferente do que poderíamos chamar de racismo tradicional, histórico, o ‘racismo étnico’”8.
Não se admira que os antigos senhores de escravos, os novos proprietários, enfim, a classe social beneficiária do sistema, tivessem os mais estranhos preconceitos e os mais extravagantes conceitos sobre os negros, quando não poucos cientistas manifestaram idéias que ajudaram a manter o negro “no seu lugar”. E mais forte que alguns desses cientistas – que perduraram com seu racismo até o desastre nazista – foi a participação da Igreja Católica, de alguns teólogos protestantes e filósofos, afirmando em bulas papais (caso do Papa Nicolau V, quando autoriza a caça e venda de negros) ou em sermões que Deus havia determinado a “inferioridade do negro”. O racismo e a discriminação já existiam, não foram criados pela eugenia, contudo ela os institucionalizou, e o futebol foi apenas um dos caminhos utilizados por essa ideologia.
Referências
ALVES, Givanildo. História do Futebol em Pernambuco. Recife: Editora Bagaço, 2a Edição, 1998.
Anos 90 - Revista do Programa de Pós-Graduação em História UFRG, n. 11. Porto Alegre, julho de 1999.
CHIAVENATO, Julio José. O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. São Paulo: Livraria Brasiliense, 1a Edição, 1980.
GUIMARÃES, Aroldo Praça. Gol de Aroldo: crônicas esportivas. Recife: Edição do autor, 2001.
Jornal “A Província”. Recife: 28/04/1906 – Anno XXIX, n. 95.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1a Edição, 2000.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1a Edição, 1976.
1 CHIAVENATO, Julio José. O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. pág. 171.
2 SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.
3 CHIAVENATO, Julio José. Pág. 170.
4 MACIEL, Maria Eunice de S. A Eugenia no Brasil, in Anos 90, n. 11. Porto Alegre, julho de 1999.
5 ALVES, Givanildo. História do Futebol em Pernambuco.
GUIMARÃES, Aroldo Praça. Gol de Aroldo: crônicas esportivas.
6 Jornal “A Província”. Recife, 28/04/1906 –Anno XXIX, n. 95.
7 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Pág. 44.
8 Foucault, Michel. Os Anormais. Pág. 403. – Para o autor o racismo que nasce na psiquiatria dessa época é o racismo contra o anormal, contra pessoas que possam transmitir a seus descendentes o “mal”, o “estigma”, o “não-normal” que trazem em si.
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