AO LEITOR, A DÚVIDA: A interdependência de repórteres e assessores de imprensa influenciando a produção jornalística local
Adriana Santana
Jornalista e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
Resumo: Com base nas conclusões alcançadas ao longo da dissertação de Mestrado CTRL+C CTRL+V: O Release nos Jornais Pernambucanos, este artigo tenciona trazer luz à discussão acerca das relações – conflituosas, mas sempre constantes - entre jornais e assessorias de imprensa, numa tentativa de identificação das possíveis causas para o uso cada vez mais premente de releases como fonte única para a confecção de matérias jornalísticas. Esse paralelo permitiu chegar ao conceito de 'jornalismo cordial' – subversão da prática profissional, com viés pouco combativo e ausência de compromisso com a investigação.
Palavras-chave: Jornalismo; Assessorias de Imprensa; Ética na comunicação; Teorias do Jornalismos.
Abstract: Based upon the conclusions of the dissertation CTRL+C CTRL+V: The Press-Release on the Newspapers from Pernambuco, this article intends to present and bring to discussion the relation between newspapers and PR agencies – always in conflict - , in order to identify the possible causes for the growing use of press-releases as the only and very source of journalistic information. This work reached the concept of ‘cordial journalism’ – a subversion of the traditional meaning of journalism, which is less ‘militant’ and does not have the investigation as a commitment.
Keywords: Journalism; Public Relation Agencies; Ethics at Communication; Journalism Theories.
Um jornal não se faz sozinho. Para que uma edição nova saia do ‘prelo’ a cada manhã é necessária uma gama de pessoas, instituições, intenções e políticas, que serão responsáveis pelo conteúdo e linha editorial que irão estampar as páginas do dia seguinte.
Há que existir fontes que gerem os fatos. E há que existir aquelas fontes que tenham propriedade para falar sobre os acontecimentos. O jornalista, por conseguinte, também não produz seus textos isoladamente. O profissional de imprensa, na maior parte das vezes, precisa seguir a política do veículo para o qual trabalha – entendendo as nuances do que é ou não interessante para o seu jornal; função essa desempenhada, em sua maioria, por editores, chefes de reportagem e diretores de redação.
Mas não é apenas à política que atenta o repórter no momento de apurar e escrever suas matérias. O tempo, sempre implacável, é senhor e juiz desse processo de formação da notícia. O ritmo imposto pela rotina das redações pode tolher a possibilidade de ângulos diferentes de abordagem numa mesma matéria, pois não há tempo hábil para se procurar outras fontes que não as tradicionais (MORETZSOHN, 2002).
Muitas vezes, é o tempo (ou a falta dele) que irá definir com quantas fontes se falará, o tamanho do texto e, até mesmo, de quais frases e palavras constará a reportagem. No entanto, será que apenas o fator velocidade, sozinho, pode explicar a mesmice dos temas abordados pelos jornais, os textos semelhantes, o uso abusivo de informações produzidas em assessorias de imprensa?
O objetivo da dissertação de Mestrado CTRL+C CTRL+V: O Release nos Jornais Pernambucanos, defendida pela autora em 2005 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, era chegar a caminhos que comprovassem se o uso de releases nas redações era realmente prática corriqueira e realizada em excesso, e, ainda, compreender o porquê desse ‘hábito’. Ao longo da realização da pesquisa, as hipóteses iniciais para o ‘copia e cola’ foram se apresentando – ritmo acelerado de trabalho, busca e medo do ‘furo’ –, ao passo em que, isoladas, também não se configuravam como única explicação plausível para o que se tentava comprovar. Por que então os jornais, com destaque para os dois maiores diários locais – Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco – (corpus desta pesquisa) –, têm feito tanto uso de informações oficiais como fonte única?
As entrevistas realizadas com repórteres, editores e assessores levaram, inicialmente, ao depósito de todas as fichas no fator tempo como o grande responsável pelo fato de os jornais dependerem tanto de releases para sair, a ponto de um repórter (“Repórter 2”) entrevistado admitir que, quando não há acesso à Internet para receber as sugestões e textos das assessorias, o número de pautas ficar tão reduzido a ponto de a editoria na qual trabalha se ver “sem direção em relação ao que será publicado no dia seguinte”. Assim, apenas o tempo e a busca pelo furo não podiam ser a causa única para essa relação entre jornais e assessorias.
Os resultados que se apresentaram na catalogação dos releases enviados pela assessoria de imprensa da Universidade Federal de Pernambuco – estudo de caso da dissertação – serviram como exemplo de que se tem feito um uso considerável de material oficial nas redações, configurando-se como prova – ao menos em relação à amostragem pesquisada – de que as assessorias chegam a conduzir, em algumas edições, a produção jornalística local.
No período de um mês, 66% de tudo o que foi publicado nos dois maiores jornais de Pernambuco sobre a Universidade foram ‘provocados’ pelas estratégias de divulgação da assessoria. Mais ainda: 44,7% dos releases aproveitados foram publicados com pouca ou mesmo nenhuma alteração, ou seja, a participação dos repórteres chegou a uma quase nulidade.
Inegável que os jornalistas sejam levados a escrever pela ‘cartilha’ dos publishers, e que muitas pautas tenham a verticalidade como origem – com alguém decidindo que determinado assunto deve virar notícia (para lembrar o conceito de gatekeeper ) – quer seja porque é de interesse comercial do jornal, ou porque vai agradar a um amigo, e tantas outras razões. Mas esse conformismo do jornalista para com a dinâmica organizacional dos jornais, de que trata Breed (1993), ainda não foi suficiente para ser descrito como causa para o CTRL+C CTRL+V.
Os caminhos trilhados por essa pesquisa não levaram a crer que fatores como a autoridade institucional, as possibilidades de sanção, a obrigação e estima para com os superiores, as aspirações de ascensão na carreira, a falta de conflitos de lealdade e muito menos o prazer de trabalhar na imprensa sejam decisivos na hora de um repórter decidir que aquele release se basta nele próprio. Afinal, seria uma visão reduzida ou mesmo naive acreditar que o dono do veículo de comunicação obrigue repórteres a usar releases como pauta diariamente, e que é o chefe, e não o subordinado, o responsável direto pelo uso de material de assessoria de imprensa como fonte única para uma matéria.
Também não caberia exclusivamente ao editor essa responsabilidade. O “Editor 3”, entrevistado ao longo do trabalho, disse não estar satisfeito com a produção jornalística local pelo fato de o noticiário atual basear-se principalmente em declarações, faltando “mais investigação e interpretação”. No entanto, esse mesmo editor não se mostrava muito seguro quanto aos seus repórteres estarem checando informações enviadas por assessorias. Ante a pergunta “você acredita que o repórter sempre checa as informações oriundas de assessorias de imprensa?”, ele respondeu: “espero que sim”. Já o “Editor 4” simplesmente afirmou não acreditar que o repórter sempre cheque dados que venham de assessorias.
Diante do quadro que era apresentado, surgiu a suposição que um outro tipo de conformismo, que não os detalhados por Breed (1993), estava se apoderando das redações e transformando o próprio modo de se fazer jornalismo. O dia-a-dia dos jornalistas e a dinâmica de trabalho das redações estavam criando uma acomodação. Acomodação esta que leva o repórter a não contactar nem mesmo as fontes indicadas no release para confirmar as informações repassadas. Acomodação que instrui o profissional a não sair da redação para ir em busca de notícias, a ficar na dependência apenas de fax, e-mails e, quando muito, telefonemas. Acomodação responsável por fazer o ‘cão farejador’ (KUNCZIK, 2001) aposentar o faro e optar pela matéria pronta, embalada para presente. Acomodação que chega às raias da irresponsabilidade, pois faz alguém que é contratado para apurar e escrever textos noticiosos delegar esse trabalho a assessores de imprensa. Acomodação que leva o jornalista e atropelar ética e bom senso, quando copia integralmente uma matéria, chegando a assiná-la como se fosse de sua autoria. Essa acomodação diante do fato jornalístico é vista por Marcondes Filho (2000) como mais um reflexo do processo de desencanto impulsionado pelo fim da modernidade, o que levaria ao “desaparecimento [...] da política como embate, competição, confrontação radical” (p.15).
O “Repórter 5”, por exemplo, afirmou não considerar o assessor de imprensa como fonte primária (mais relevante e confiável), mas admitiu não checar sempre as informações que recebe: “depende do dado, mas normalmente, para assessorias confiáveis, não [checo]”. Nesses casos, o leitor só receberá informações verídicas se o assessor tiver se preocupado em repassá-las. E, de toda forma, o texto copiado de um release sempre trará a angulação de quem o produziu.
Numa tentativa de encontrar explicações para o comportamento ‘acomodado’ de jornalistas, essa pesquisa tomou de empréstimo a noção sociológica do ‘homem cordial’ (2003 [1936]) para fazer um paralelo com um conceito originado nessa dissertação: o de ‘jornalista cordial’ – uma ‘categoria’ profissional que se caracteriza pelo não-cumprimento da função social de investigação e fiscalização, que opta por agradar a todos e evitar o conflito, esquivando-se de ir em busca das notícias onde elas realmente acontecem (na rua), e contentando-se em atuar como mero copiador de releases. Esse tipo de jornalismo, o ‘cordial’, apresentou-se ao longo do trabalho como o principal efeito das hipóteses iniciais, e que se resumiam na dinâmica e no dia-a-dia das redações.
Seria muito simplista nomear ‘vilões e mocinhos’ na busca pelas causas do uso tão premente de informações oficiais como fonte única na imprensa. O repórter não poderá ser de imediato taxado de desleixado porque tem o costume de usar releases como pauta ou mesmo texto final. Talvez ele tenha sido incumbido a fazer cinco matérias numa tarde e não houve tempo para ouvir a todos os envolvidos nos fatos. Pode-se afirmar, ainda, que o profissional mal pago, sem estímulo para capacitação profissional e, por isso mesmo, insatisfeito no trabalho, não irá se preocupar com a qualidade das informações publicadas no seu jornal.
O assessor também não deveria ser apontado como o único responsável pela avalanche de releases veiculados nas edições do dia seguinte, uma vez que, salvo exceções, ele não terá o poder para decidir pelos editores e repórteres o que deverá ser a pauta do dia. Se as sugestões dos assessores viram notícia nos matutinos é porque assim o permitiram os jornalistas que trabalham nos veículos. E se o permitiram, é porque a própria dinâmica de trabalho nas redações e as escolhas realizadas os levaram a isso.
No entanto, o que se pode dizer tanto da situação em que o repórter que copia o release quanto do assessor que usa de má fé ao repassar dados inverídicos é que fatores como falta de tempo (no caso do repórter), acúmulo de funções (edição e reportagem, por exemplo), insatisfação profissional (no caso do repórter) e exigência do patrão (em ambos os casos), não são justificativas para o mau uso das práticas jornalísticas. Mas podem ser vistas como explicações, ou mesmo causas para isso estar acontecendo. Os pontos levantados neste trabalho indicam que essas podem ser as hipóteses que explicariam o CTRL+C CTRL+V nas redações. Se são legítimas o suficiente, cabe a uma discussão de cunho ético, travada pelas instâncias responsáveis (como a Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj), por exemplo, a determinar.
Assim como se configura maniqueísta vaticinar que o repórter é apenas uma vítima do ritmo de trabalho imposto pelas redações, sem levar em consideração o seu papel e responsabilidade como comunicador, também é bastante reduzida a visão de que o assessor é apenas um marqueteiro travestido de jornalista. Leviano, ainda, apontar toda e qualquer informação oriunda de uma assessoria de imprensa como falsa ou ‘maquiada’. A preocupação que se teve nesta pesquisa não levou em consideração o receio de que, ao copiar releases, o repórter poderá estar oferecendo mentiras ao leitor. O que esteve em discussão foi o fato de que mesmo em se tratando de um texto sério, informativo, produzido por uma assessoria de imprensa responsável, o problema maior não residirá na dúvida quanto à veracidade das informações, e sim no que está oculto (intencionalmente ou não) e que o repórter não se preocupou em investigar. Se 100% de tudo o que foi publicado com base nos releases enviados pela UFPE em dezembro de 2004 foram aproveitados de forma positiva, ou seja, renderam matérias com conseqüências positivas para a instituição, há de se questionar se essas matérias teriam sido veiculadas de forma diferente caso houvesse apuração do repórter.
Talvez resida justamente nessa ausência de informação, ou no dado não aprofundado, a importância de uma notícia para o público. Além disso, se há releases suficientes para determinar a pauta do dia, torna-se desnecessária a busca por outros assuntos, por outras angulações.
Pôde-se chegar à conclusão, ao final do trabalho, que parece ser inócua a tentativa de separar simplesmente esses dois lados profissionais – assessor versus jornalista de veículos. Ambos realizam suas atividades utilizando técnicas jornalistas, diferindo, basicamente, no objetivo e no compromisso, que no caso do jornalista de ‘batente’ deveria ser sempre com o público leitor. Importante, sim, é verificar os limites profissionais de cada um, delimitando o que cabe ao assessor e o que cabe ao jornalista de ‘batente’. É este quem tem a responsabilidade pelo texto que escreve e as informações que apura – ou deixa de apurar. A relação assessor versus repórter nunca poderá ser unicamente de parceria – o papel do segundo é checar, duvidar, investigar, escrever e melhorar o que escreveu. Se não, está fadado a transformar-se em mero copiador de releases. E o release é uma das muitas ferramentas e fontes das quais deve dispor o profissional de imprensa para realizar seu trabalho. Mais do que isso, vira muleta.
Complexa e perigosa é a tentativa de vislumbrar soluções imediatas para o problema. Reformulações são necessárias, é certo, mas muito difíceis de serem implementadas a curto prazo, como mais tempo de apuração, investimento em capacitação profissional e (re)valorização da reportagem nos jornais. São medidas indispensáveis, mas que envolvem muito mais do que boa vontade dos profissionais.
Muitas outras questões ficaram de fora desta pesquisa – não por descaso quanto a elas, mas simplesmente pela opção metodológica de se concentrar num dos aspectos do uso abusivo de releases: o risco de os jornais oferecerem textos acríticos e idênticos a seus leitores. Fatores como: a importância de quem envia o release determinando a publicação; a ‘amizade’ dos assessores com os jornalistas contando pontos na hora do aproveitamento do material; os releases que já chegam ‘encomendados’ às mãos dos repórteres (o que resvala para a questão da influência de determinadas organizações na produção dos jornais) e outros não foram extensamente abordados nesta pesquisa. Questões dessa relevância precisam, contudo, ser estudadas a fundo, e irão merecer atenção na tese que está sendo desenvolvida atualmente no Doutorado em Comunicação da UFPE, e que é um aprofundamento do tema. Na dissertação, no entanto, optou-se por um recorte menor do problema para que ele pudesse ser analisado à exaustão.
Definir os limites de interferência das assessorias nos jornais, refletidos na releasemania tão comum às redações, é tarefa para ser analisada e discutida pelos profissionais de todos os lados do balcão: veículos, empresas e Academia. A definição da função da assessoria e, especialmente, do seu principal meio de comunicação, o release, pode contribuir para que jornalistas percebam que, ao publicar esses materiais sem a devida checagem e análise dos reais objetivos, podem estar comprometendo a qualidade dos jornais que são produzidos diariamente.
O grande propósito desse trabalho é que as considerações a que ele chegou - os jornais locais têm feito uma utilização excessiva de releases, funcionando numa dependência de fontes oficiais para se pautar diariamente, por conta, possivelmente, da própria rotina de trabalho (que não dá espaço para investigações mais aprofundadas) e que leva a um comportamento impensável dentro do jornalismo, a ‘cordialidade’ no sentido buarquiano – sejam levadas ao conhecimento de quem faz parte desse ‘jogo’: repórteres, editores, assessores e leitores.
Ressalta-se, por fim, para a necessidade de alertar o público sobre o assunto, único envolvido que ainda permanece desconhecendo essa prática. Creditar a informação que vem das assessorias já seria um bom começo. Ao leitor, portanto, que reste ao menos a opção da dúvida.
Referências
BREED, Warren. Controlo Social na Redacção. Uma Análise Funcional. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e "estórias". Lisboa: Veja, 1993.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995 [1936].
KUNCZIK, Michael. Conceitos de Jornalismo: Norte e Sul: Manual de Comunicação. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: O fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002
SANTANA, Adriana. CTRL+C CTRL+V: O Release nos Jornais Pernambucanos. Dissertação de Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2005.
Press-releases são matérias jornalísticas enviadas por assessorias de imprensa aos veículos de comunicação, com objetivo de divulgar fatos com relevância jornalística que envolvam as organizações (públicas ou privadas) assessoradas.
Aquele que é responsável por selecionar e filtrar o que vai de fato virar notícia.
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